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« Nada foi feito para acabar com a violência no Haiti »

Segundo o haitiano Raphael Yves Pierre, diretor da ActionAid em Porto
Príncipe, além de reforçar o processo de desarmamento da população, é
preciso lutar pela reinserção social e econômica da população. Para ele,
ação da comunidade internacional contribui para fragmentar a sociedade
civil local.

Rio de Janeiro – Em 2004, o Haiti ocupava a 153a posição do Índice de
Desenvolvimento Humano medido pelas Nações Unidas. Trata-se do país mais
pobre do hemisfério ocidental e um dos de mais baixo nível de qualidade de
vida no mundo. Atualmente, mais da metade dos haitianos está desempregada
e 70% tiveram que deixar suas terras, devido a um processo de degradação
causado pelo plantio do café, o principal produto de exportação do Haiti.
A expectativa de vida é de 52 anos, apenas 20% da população estão
empregados e taxa de analfabetismo é de 45%. O acesso à água potável é
outro problema gritante: apenas 37% da população usufruem desse direito. E
uma das maiores concentrações do mundo de pessoas infectadas por HIV/Aids
é a ilha de Hispaniola, a segunda maior do Caribe, cujo território é
dividido entre o Haiti e a vizinha República Dominicana.

A pobreza extrema tem provocado a migração interna em larga escala,
principalmente para a capital, Porto Príncipe – onde já vivem dois milhões
de pessoas – e para a República Dominicana, onde os índices de miséria
também são altos. Lá, os migrantes haitianos e seus descendentes compõem a
parcela mais marginalizada da população. Muitos não possuem registro
legal, não têm acesso à saúde e à educação e sofrem vários tipo de
discriminação.

Desde o início de 2004, o Haiti teve seus problemas sociais
potencializados pela crise política instaurada no país e que terminou com
a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide. Desde então, o mundo voltou
seus olhos para o país e a comunidade internacional, ao menos no campo das
intenções, se mostrou preocupada. Há cerca de um ano e meio, o Brasil
participa diretamente do esforço de « reconstrução » do Haiti, estando à
frente da Minustah, a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti,
responsável por criar segurança e um ambiente estável no país através do
desarmamento da população; apoiar o processo político e a boa governança
em preparação para futuras eleições; e monitorar e apresentar relatórios
sobre os direitos humanos no local.

Ao contrário do governo brasileiro, parte dos movimentos populares e das
organizações da sociedade civil defende a retirada imediata das tropas
brasileiras do Haiti. Segundo os movimentos, a missão estaria apenas
fortalecendo o projeto dos EUA de exploração da população haitiana, e
deveria ser substituída por tropas formadas por militantes de organizações
de ajuda humanitária, observadores da sociedade civil e parceiros enviados
pelas entidades do movimento social.

Uma das organizações de ajuda humanitária que trabalha atualmente no Haiti
é a ActionAid. Através da parceria e financiamento de projetos de
educação, prevenção à Aids, formação de cooperativas comunitárias, acesso
à água e geração de renda, a ong tem atendido cerca de 40 mil pessoas. À
frente desses projetos está o haitiano Raphael Yves Pierre, diretor
executivo da ActionAid em Porto Príncipe. Esta semana, Pierre participou
do seminário « Diálogos sobre pobreza e desigualdades », realizado no Rio de
Janeiro. Lá, concedeu uma entrevista a jornalistas onde falou da situação
atual no seu país e da importância da participação da comunidade
internacional na reconstrução do Estado. Leia abaixo os principais trechos
desta conversa.

Qual a situação hoje no Haiti, depois de mais de um ano da presença das
tropas brasileiras no país?
Raphael Yves Pierre – Depois da queda de Jean-Bertrand Aristide, houve um
colapso do governo e o país ficou sob o controle de grupos armados. A
presença das forças armadas estrangeiras no Haiti podia ter tido um papel
de estabilização, criando condições para promover o processo de
desarmamento da população, de controle da ação dos grupos armados. Isso
teria que ter sido feito ao lado de iniciativas para um processo de
inserção econômica da população, porque o problema não é puramente
político. Temos que resolver o problema econômico também. Uma das falhas
foi não haver uma solução integrada e vontade da parte da comunidade
internacional para resolver o problema com a participação das pessoas, da
comunidade haitiana.

E o quadro de violência urbana continua grave?
RYP – A violência está igual, mas ganhou diferentes formas: seqüestros,
vandalismo… A violência no Haiti está relacionada, além de atividades
políticas e grupos armados ligados ao movimento Lavalas, à pobreza. Neste
sentido, o que foi feito para se ir além da violência? Muito pouco. É
preciso enfatizar o processo de desarmamento e trabalhar a questão da
reinserção social e econômica do povo. E nada foi feito neste sentido até
agora.

E em relação à atuação das tropas brasileiras?
RYP – Houve como uma certa confusão com a performance do exército
brasileiro. O primeiro comandante, general Heleno, teve um discurso um
pouco confuso, que não facilitou o processo de desarmamento. Criou-se uma
dicotomia entre a polícia nacional e o exército brasileiro. Para mim, a
comunidade internacional tem que demonstrar efetivamente sua vontade de
participar do processo de reconstrução nacional. Acho que a comunidade
internacional é parte do problema. Se há um consenso dentro da comunidade
internacional acerca das receitas neoliberais para o Haiti, isso não vai
mudar nada. E não é assim que a comunidade internacional vai ser parte da
solução. Os países têm que definir linhas mais claras de sua vontade de
participar do processo de reconstrução nacional.

Como isso pode ser feito?
RYP – Por exemplo: o marco da cooperação internacional foi como um pacote
de projetos paralelos, sem nenhum ação estratégica integrada. Isso
contribui mais para fragmentar a sociedade civil haitiana em vez de buscar
uma sinergia entre os setores. Outro exemplo é o processo de eleições. O
conselho eleitoral hoje é um marionete da OEA [Organização dos Estados
Americanos]. Se estão substituindo a Minustah, eles não estão contribuindo
para construir um novo Estado. Então a comunidade internacional tem que
definir mais claramente suas intenções em relação ao país.

A Plataforma Haitiana pela Defesa do Desenvolvimento Alternativo (Papda)
[uma rede de movimentos sociais e organizações da sociedade civil que
trabalha com políticas públicas para soberania alimentar, democracia
participativa e integração econômica] pode representar uma esperança para
a solução desse problema?
RYP – Eu acredito que sim, na medida em que ela desenvolve um trabalho de
lobby contra as políticas neoliberais. É uma esperança porque abarca
diferentes organizações, de diferentes tipos: campesinas, ongs e agências
de direitos humanos. Temos que apoiar iniciativas como esta para que
possamos formular um novo projeto de sociedade. É isso o que falta. Não
temos que apenas denunciar, mas definir propostas e alternativas. E o
trabalho de lobby tem que se nutrir dessas alternativas.

Em relação a ações práticas, de onde pode vir o exemplo?
RYP – Há o exemplo da dívida externa. Houve um processo de mobilização das
organizações de base, uma proposta para inverter o fundo de dívida em
iniciativas sociais. Infelizmente, as instituições internacionais recusam
a proposta de cancelar a dívida haitiana, partindo do pressuposto de que o
Haiti não é um país elegível para o cancelamento da dívida. É um combate
que temos que seguir fazendo, porque é claro que a dívida externa é uma
forma mais tangível de injustiça. Então temos que buscar alianças fora do
país, com movimentos sociais da América Latina, por exemplo, para apoiar
este processo.

O não perdão da dívida externa haitiana não pode se transformar numa forma
de controle permanente do país por parte de seus credores?
RYP – Temos que colocar a coisa de outra maneira. O perdão da dívida não é
um favor; é um direito, porque a dívida que foi acordada com as agências e
instituições internacionais e com o governo não teve a participação da
sociedade civil, e os fundos não foram usados para o bem estar do povo. A
finalidade foi mais apoiar o processo de ditadura do que apoiar um
processo de desenvolvimento humano. Então temos que olhar para as ações em
relação à dívida como uma busca de justiça e não como um favor. Depois
disso, temos que recusar toda forma de condição ligada ao perdão da
dívida. É inaceitável condicionar o perdão da dívida à implementação das
políticas de ajuste estrutural. O custo das políticas de ajuste estrutural
é muito alto para o povo. Então temos que lutar pelo perdão da dívida sem
condições.

Neste último ano, houve investimento no Haiti? Dizem que há um bilhão de
dólares nos bancos que deve ir para o Haiti, mas houve iniciativas
econômicas neste sentido? RYP – Há promessas, mas não há ações tangíveis.
Além disso, o marco de cooperação se definiu sem que o processo tenha sido
inclusivo, com a participação seletiva de somente alguns setores da
sociedade civil. Não houve um processo integrado com a participação dos
setores populares. Em termos de conteúdo, o marco de cooperação não
integra, por exemplo, o setor agrícola para resolver a crise do
campesinato. Mais de um ano depois da implementação do acordo de
cooperação, não há avanços firmes, e a situação econômica piora em vez de
melhorar.

O problema do Haiti é um conjunto de fatores internos e externos. Há
debilidades internas que precisamos superar, como a falta de práticas
democráticas, de cultura de debate, de cultura de tolerância. Outro ponto
é que não há uma nação. Os setores campesinos, por exemplo, não são
considerados parte do país. Temos que integrá-los à sociedade. No nosso
caso, os fatores internos são tão importantes quando os externos para o
processo de reconstrução nacional.

Bia Barbosa – Carta Maior 27/11/2005